terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

PARTE I

Era a primeira vez em que ela andaria de trem e estava ansiosa por isso. Era um dia frio e nebuloso. Iria sozinha desfrutar de uma viagem consideravelmente comprida, seriam três horas de boa leitura e captação de tudo o que pudesse ser visto. Era assim que ela gostava, depois que descobriu o sabor de estar sozinha em uma nova experiência ela passou evitar pessoas que pudesses diluir a expressividade dos momentos. O que para ela queria dizer todas as pessoas, de toda e qualquer idade e gênero.

Naquela noite como era de se esperar ela não dormiu, estava ansiosa de mais para até mesmo se distrair com a televisão. Ficava inquieta e nem mesmo Tórion, sua carpa alaranjada, a concentrava. Pode parecer estranho alguém ter uma carpa como animal de estimação, mas Naadi tinha, e pode acreditar, Tórion atendia pelo nome. Tudo bem, talvez ela não atendesse pelo nome, mas em todas as vezes que Naadi a chamava ela não tardava a aparecer. Também parece estanho alguém conseguir se acalmar com animal de sangue frio. Ela dizia que as pessoas se identificam com animais de temperatura respectiva. Em momentos menos espectativos, Naadi conseguia ficar horas a finco, observando as nadadeiras da carpa, como fino véu de translúcida ceda dançando, sensível a cada corrente de água, a cada movimento externo. Ela se maravilhava com a cor fumegante que quase queimava seus olhos, aquele alaranjado enrubrecedor, aqueles pequenos filetes de espelho que iluminavam a sala de sua casa, que pintavam as paredes e seu rosto.


As últimas horas da noite foram as mais difíceis: Naadi não se concentrava em nada e seu coração palpitava rapidamente. Decidiu então ir para a estação, com certeza lá ela aproveitaria mais da ansiedade. Outra coisa muito peculiar nela, ela gostava de sentir tudo, do melhor ao pior sentimento, e quando eu digo que gostava estou falando de algo alem de apenas sentir. Ela potencializava os sentimentos em pequenas partes de sensações. A ansiedade fervilhava em seu estomago, ela podia ver luzinhas de cores variadas e fluorescentes. Ela sentia como uma chuva sobre o mar, quando a água doce encontra com a água salgada e elas se fundem tornando-se uma só. Como quando se sente o cheiro de terra molhada, como quando se toma banho de chuva. Todas as sensações a transpassava como que gladius.

Foram pequenos momentos de espera e logo ela estava dentro do trem, segurando entre os dedos a capa de O General e a Lira que a acariciavam as mãos. Ela o apertava em um abraço de amor, desse amor que a gente aperta o amado para contentar o coração, sem se descuidar para não matar de amor. Era um amor pelas palavras, pelo gosto que elas têm, pelo prazer que elas dão.

Sentou-se na poltrona que sorria para ela, que a convidava para partilhar aqueles trilhos. Passou a mão esquerda sobre a capa áspera do livro e não reconheceu os próprios dedos. Enquanto se perdia na imagem de seus membros desconhecidos, os outros passageiros se acomodavam nos demais assentos. Ao seu lado uma menina dos cabelos cheios de caminhos espiralados se sentou e passou a investigar também as mãos de Naadi. Ela tinha olhos espichados para a vida que passava a sua frente, um rostinho que latejava o desconhecido.

- O que tem na sua mão? – Ela perguntou, com uma voz macia e morena.

- Como? – Naadi se assustou, não estava esperando por uma compania, muito menos uma que medisse menos de um metro. Encolheu as mãos e olhou para janela á fora. O dia ainda estava frio e a noite parecia não querer se recolher, e com complacência o Sol também não fazia questão de dar as caras. Voltou o olhar para O general e a Lira e depois para a menina, e novamente para O General e a Lira.

- Como você pode ser tão pequena?

- O que tem na sua mão?- Ignorando a pergunta de Naadi a menina continuou de onde havia parado.

- Mas você é tão pequenina! -Naadi não se lembrava de ter sido assim tão pequena. Ela já havia nascido do tamanho em que estava.

- Eu não sou pequena. Fique você sabendo que eu sou a maior da minha turma e eu ainda so tenho oito anos. Espere para ver quando eu estiver da sua idade.

Naadi não respondeu nada, não queria dar motivos para continuar aquela conversa, nem qualquer outra que pudesse surgir na cabecinha daquela criança.

- O que tem na sua mão?

- Nada. – mostrou as mãos e virou a cabeça para o lado oposto, imaginando quais os sabores daquele momento desagradável, aproveitando cada um deles.

Piuí... Soou o sinal para o espetáculo, assim pensou Naadi. Chap chap chap chap, e o trem ia ganhando velocidade. Naadi respirava vagarosamente, experimentando cada pitada de ar daquela nova sensação que ia surgindo dentro dela. E o trem continuava a rasgar o vento com força cada vez maior. Quando Naadi fechou os olhos para ver o sabor de estar ali, foi bruscamente irrompida por uma mãozinha segurando a sua mão. Abriu os olhos e viu dois feixes de negra luz a implorando calor, olhos tão penetrantes que ela teve de desviar o olhar para não se afogar no medo daquela criança. Agora com as duas mãozinhas presas a mão de Naadi, a menininha pedia por conforto.

- Que foi? - Sussurrou delicadamente Naadi

- Esse barulho! – E colocou as mãozinhas nos ouvidos sem mesmo desenrolar-se das mãos de Naadi.

- Shishishi... - Naadi colocou suas mãos sobre os ouvidos da menina e a encostou em seu colo, embalando como um recém nascido aquela menina que ela nunca havia visto.

- Como você se chama?

-Naadi, e você?

Mas a menina não respondeu, voltou a recostar sua cabeça no colo da desconhecida.
Naadi nãos se lembrava da ultima vez em que tocou uma criança, nem mesmo se lembrava de conhecer uma criança. Não se sentia a vontade naquela posição, com o corpinho de uma crianç, encostado ao seu, um corpo de mulher, delineado por linhas simétricas, que a faziam uma mulher desejada, cobiçada, belíssima. Cheia de mistérios e segredos, por trás de cada palavra que dizia. Nesse exato momento ela se lembrou do O General e a Lira, ele não estava mais em suas mãos. Agora, o que ocupava suas mãos era a cabeça de uma criança, totalmente desconhecida, uma criança sozinha, em um trem indo direto para uma cidade fria. E se não houvesse ninguém a esperando na ultima parada? E se não houvesse ninguém a esperando em lugar algum? Olhou para os cachos da menina, e lembrou-se de voltar a procurar pelo livro. Ele estava caído, aberto olhando para ela, com uma tristeza de alguém renegado. Caído, perto de seu pé, desconjurado inanimado. Naadi estendeu as mãos e esticou os dedos irreconhecíveis, não o alcançou. O General não queria ser alcançado, estava bem lá... onde estava... sozinho em o sussurrar. Ele a olhou pela ultima vez e ela entendeu que esse era o sentimento que a viagem guardava a ela e aceitou e se deliciou em perder aquelas palavras.

- Você gosta de mim? - A criancinha levantou a cabeça e fez a pergunta, como se a vida de toda a humanidade dependesse da resposta certa. Os olhos da menina a engoliam.

Incontáveis foram s respostas que passaram pela mente de Naadi. Entre elas as de maior peso eram as verdadeiras e cruéis, as que expressavam rápida e dolorosamente as respostas. Pensou também em fingir não ter ouvido apenas ignorar e olhar para o outro lado. Mas não conseguia, aquelas palavras ficavam chacoalhando em sua cabeça, ensurdecendo-a. O que diria? Ela nunca havia dito que gostava de ninguém, nem mesmo sabia que as pessoas gostavam umas das outras.

- Sim. – Um sim mudo. Oco.

A menina sorriu e se afundou ainda mais no tórax de Naadi.

Naadi perdeu completamente o ar. Nada do que ela fizesse conseguia tirar a sensação de que estava sendo compactada, esmigalhada. A cada chap chap, das rodas do trem, ele ia se sentindo menor , ate quase desaparecer.

Um solavanco e um grasnido fizeram a menina se agarrar ainda mais forte as costelas de Naadi.

- Shishishi...

-Já esta chegando?

- Sim querida.

Nathya Carmylle

Um comentário:

Nc disse...

escrever com vc, é sempre a forma mais prazerosa, de escrever.